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quinta-feira, 8 de abril de 2010

A HISTÓRIA DE CARMINHA

Corria o ano de 1931.
O inverno chegou mais cedo nos pagos do Rio Grande, trazendo o frio, o minuano, a umidade, a geada, o silêncio e a solidão aos campos missioneiros.
Mas, no campo dos Medeiros, em uma fria madrugada, um choro de criança recém nascida corta o silêncio.
Aristides abre um longo sorriso no rosto sério de chefe de família; lágrimas de felicidade escorrem pela face serena e suave de Irene – a casa dos Medeiros recebia com paz e harmonia aquela criança que vinha ao mundo na solitária madrugada.
Era uma menina, de nome Maria Carmem, mas de Carminha a vida inteira seria chamada.
Nasceu de 7 meses, com a saúde frágil.
Em razão disso, a mãe enrolava a guria em roupas de lã e, para protegê-la do frio que trazia dentro de si, a embalava, cantarolando cantigas de ninar, próximo do fogão à lenha que havia na cozinha.
Não adiantava, embora os redobrados cuidados da carinhosa Irene.
A Carminha seguia chorando, lutando contra a frágil saúde, agravada pelo parto prematuro, pelo frio, pela umidade, pela geada e pelo minuano.
Mas a guria tinha o sangue Medeiros nas veias – lutar estava no seu destino.
Que viesse a vida e suas lutas.

II –
Aos poucos, a brava Carminha foi superando os problemas de saúde, embora o inverno sempre a castigasse com rigor e constância.
Primogênita do casal, tornou-se companheira inseparável da mãe, seu exemplo e modelo por toda a vida.
Por isso, sofreu quando teve de partir para o internato, em Cruz Alta, onde cumpriria o ritual das filhas das famílias missioneiras nos anos 30 e 40: cursar o Segundo Grau da época (cujo nome, então e durante muito tempo, era curioso: “Normal”).
Finalizado o Segundo Grau, era o momento de despedir-se das amigas de Internato (que jamais a esqueceriam, por toda a vida) e tornar à casa paterna.
Pois às moças do Rio Grande, à época, era incogitável fazer Faculdade.
Bastava ser moça prendada, “de boa família”, e ter finalizado o Segundo Grau para sonhar com o dia em que o príncipe bateria à sua casa, pedindo a sua mão em casamento.
Era o destino das moças de então.
E foi o destino que Carminha cumpriu à risca.

III –
Um par de anos depois, por volta dos 20 anos, o pai preparava-se para viajar à Bossoroca, terra e querência dos Fabrício.
(Quem conhece a história da Bossoroca, sabe que a crase acima não está errada).
A mãe insiste para que Carminha acompanhe o pai naquela viagem.
Carminha, caseira e apegada à mãe, queria ficar.
Irene, pra convencer a filha, disse, então, sorrindo:
- Vai, Carminha. Talvez tu conheças um moço bonito pra ser o meu genro.
Carminha, sorrindo, acatou o pedido da mãe.
E viajou à Bossoroca, acompanhando o pai, Aristides.
Na volta, dois dias depois, a mãe pergunta, de novo sorrindo:
- E então? Conheceste o moço bonito que vai ser o meu genro?
E Carminha, sorrindo sem jeito, respondeu:
- O único moço que eu conheci foi um chato que passou o almoço inteiro falando de um crime que aconteceu não-sei-aonde…

IV –
Um ano e pouco depois, em Santo Ângelo, Capital Missioneira, Carminha voltou a se encontrar com o moço da Bossoroca, no casamento de uma grande amiga de Internato, Helena – que, por coincidência, era prima dele.
Mas não dançaram – a saúde frágil de Carminha voltou a se manifestar naquele rigoroso inverno de julho de 52, a ponto de ter de ser hospitalizada.
Quatro dias depois, o moço da Bossoroca a visita no hospital.
O moço se chamava Newton (mas ela gostava mais do apelido, Nito. Talvez porque, alegre como era, imagino que brincasse com Irene: - Mãe, a senhora queria um genro bonito. Tá aqui o Nito).
Era o destino na vida de Carminha.
E a vida, em breve, lhe traria uma alegria e uma tristeza – pouco tempo depois do noivado, perderia a mãe, seu modelo e referência, que partiu para a Eternidade com apenas 46 anos, vitimada por doença fulminante e inesperada.

V –
Casam em 8 de janeiro de 55.
E atravessam a vida superando juntos os reveses que ela sempre apresenta.
Tiveram momentos tristes e alegres nos 52 anos de casados.
Mas as alegrias foram, imensamente, maiores.
E imensamente maior o Amor que dedicaram aos 5 filhos e 7 netos.

VI –
Mas a saúde frágil lhe reservou um fim cruel.
Passou os últimos 7 anos da sua existência lutando, como foi o seu destino, com dignidade pela vida.
E o moço da Bossoroca, já perto dos 80 anos, foi marido e companheiro, solidário e exemplar ao seu lado, nos 7 anos que passou deitada, no entardecer da vida.

VII –
Penso em tudo isso quando olho para aquele frágil corpo deitado no triste caixão.
Como ela conseguiu chegar às vésperas dos 76 anos, apesar da saúde frágil desde o berço?
Penso que foi graças à capacidade de lutar, de amar a vida e os seus semelhantes, de ser solidária e generosa.
Acima de tudo, foi pelo Amor que dedicou a toda a família, aos Medeiros e aos Fabrício – e a sua imensa fé em Deus.
Mas há mais a pensar.
Penso no que aprendi com ela.
Aprendi muitas coisas que ela me ensinou.
Mas, acima de tudo aprendi com o seu exemplo.
E foi dela que herdei a indignação com as injustiças do mundo.
(E, na exata contrapartida, foi com o exemplo do meu pai que aprendi a agir, sempre, com a Razão; por mais difícil e árdua que seja a situação que se apresente e por maior que seja, na origem, a indignação, as razões da lógica são as que me conduzem, sempre).
E foi com ela que aprendi o sentido, o valor e o significado da palavra solidariedade.
Pois ela dedicou aos 5 filhos e aos 7 netos um Amor sem igual, como se cada um de nós fosse o único.
Mas isso não a impediu de liderar campanhas de solidariedade em relação a pobres e desamparados.
A maioria, pessoas que ela sequer conhecia.
Pois a generosidade era um traço marcante na sua personalidade.
E com todo o Amor que dedicou a cada um de nós, os 5 filhos, se dependesse dela seríamos 6 – porque sofria um Amor de mãe quando via um negrinho pedindo esmolas na esquina.
Se dependesse dela, teria adotado o primeiro negrinho que visse pedindo esmolas na esquina.
A ti, brava Carminha, minha mãe, o meu abraço, o meu agradecimento e o meu respeito.
O último beijo eu já te dei.

Newton Luís Medeiros Fabrício
Obs: por favor, não me envies mensagens de pêsames.
Se queres fazer algo, faças algo pelo primeiro negrinho que tu encontrares pedindo esmolas na esquina.
Porque isso é o que a Carminha – e seu coração, imenso, solidário e generoso – gostaria que fosse feito.

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